martes, 23 de junio de 2009

Uma janela de Verão


Sua vida passada à beira-mar. O mar era o horizonte mais próximo, e também o mais remoto, desde o começo da infância. A casa a que todos os anos se voltava e de onde sempre de novo se partia, segundo um ritmo, uma lei escondida nas coisas, que ela levara, muito tempo a entender. De repente os dias eram límpidos, leves, cheios de pássaros, nasciam no jardim as hortenses, depois os jarros, depois as beladonas, os vestidos mudavam, o ar era mais quente, mais cheiroso, o céu era muito mais redondo e rasgado, sobretudo quando se olhava do chão, deitado sobre a relvas, e então, sem que soubesse nunca exactamente quando, era a hora de fazer as malas e de ir embora, era sempre um dia que chegava bruscamente, perguntava-se quapdo e diziam sempre «ainda falta muito», mesmo quando diziam «amanhã» o dia não chegava, e de súbito estava-se dentro do. dia sem o ter sentido aproximar-se, como se se tivesse 'saltado’ sem cair entre dois muros, entrava-se no carro e partia-se, no meio de malas, cestos, trouxas de roupa e caixotes cheirando a sabão, Casimira amarra­va o lenço na cabeça, passava para trás e fechava a janela, alisava com as mãos o avental antes de a sentar ao colo, e era sempre Casimira que ainda nessa tarde a levaria á praia com Elisa, ela olharia da praia e poderia distinguir as paredes brancas, a porta, as pequenas janelas — lá estava, lá estava a casa, plantada no Verão. Todas as coisas iguais, recuperadas, porque não havia ainda nenhum intervalo no tempo. Os pés reconheciam as sandálias, como os ouvidos o vento, e o corpo o sabor do mar. Todas as coisas intactas, que de repente voltariam: o nevoeiro entrando pelas fisgas, como um assobio muito fino, o cheiro das manhãs em que chovia, os barcos, todos brancos, sobre o mar. E sobretudo a casa voltaria, idêntica, interior, envolvente, como o peso de dois braços, durante muitos anos voltaria, até que insensivelmente começaria a afastar-se como um barco partindo, e de repente havia uma distância intransponível entre ela e a casa de repente era o último dia e a casa fechava as suas portas, o Verão fechava as suas portas e o deserto crescia em toda a volta, o homem desmanchara a barraca e enrolara os panos, pegou com as mãos nos bonecos e sacudiu-os com força antes de atirá­los ao chão — mortos, de pau, os braços soltos, as saias de folhos desbotadas.


Teolinda Gersão, do livro Paisagem com mulher e mar ao fundo (1982). Edições "O Jornal".



Imagem: "Banco da Ericeira" (fotografia tomada pela Marta, na Ericeira: um lugar muito perto de Lisboa e muito belo)

3 comentarios:

Graça Pires dijo...

A infância é um lugar iluminado e luminoso. Que bom recordá-la assim.
"De repente os dias eram límpidos, leves, cheios de pássaros, nasciam no jardim as hortenses, depois os jarros, depois as beladonas, os vestidos mudavam..."
A Teolinda Gersão escreve mesmo bem.
Um beijo Marta.

P. Piu-piu dijo...

Ouvi dizer que as crianças não percebem o que quer dizer "passado" nem "futuro". Ouvi dizer que a infância era aquele lugar seguro na incerteza de um eterno presente.
Gostei muito deste texto. Obrigada pela dica.

marta dijo...

Sim...a natureza das crianças é não compreender todas as palavras, por isso são felizes. Depois tudo muda...chegam palavras como: "tempo", "passado", "lembrança", "futuro", "incerteza"...e temos saudades de tudo o que já não somos, da luz da ignorância de palavras,porque a nossa vida é isso: um dicionário cada vez mais cheio de palavras.
Conheces o conto da Sophia de Mello: "A viagem"?